quinta-feira, 19 de setembro de 2013

Monstruosidade

Em um set de filmagem para um novo filme (Ou em uma sala de edição de um telejornal alerta)
- Como deixá-lo ainda mais assustador?
- Não sei, eu não vejo como. Já ressaltamos essa falha dele aqui, já ocultamos a nossa falha desse outro lado. Já demos a ele uma aparência perigosa e cínica, indigna de confiança. Já ocultamos a família dele.
- Não é o suficiente. Precisamos fazer com ele que se torne um monstro. Põe um bigode nele, um capuz. Uma lente vermelha, pelo por todos os lados. E garras. Ah, uma voz assustadora.
- Assim quase não dá pra reconhecê-lo.
- É a intenção.
- Por que?
- Porque precisamos que as pessoas o odeiem, que elas sintam que devem matá-lo na hora, nem ouvi-lo.
- Mas por que?
- Porque se passar tempo demais pode ser que elas notem que o monstro também é humano. E elas sabem que é mais fácil matar um monstro que um homem.


sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Criação

No dia de 1 ano de namoro, Adão foi pego de surpresa por Eva que chegou com um "Bom dia, amor!", um café da manhã servido na cama - digo cama para ser gentil, mas era um amontoado de folha mesmo - um beijo e um presente magnífico: Um relógio-do-Sol de pulso.
- Ah, Eva, sua danadinha! Sempre me surpreendendo!
- Claro, amor, eu achei que você tinha esquecido do nosso aniversário!
Esquecera sim, mas o cara é malandro, e negou o quanto pôde.
- Então cadê minha surpresa?
- Aguarde que mais tarde eu dou.
Saiu atordoado - mas bem alimentado pelo café da manhã de Eva - procurando qualquer coisa que pudesse ser presente. A tantas horas do dia, eis que encontrou uma pele de cobra largada pelo Éden. "Vou pregar um susto na danadinha da Eva! Opa, mas e o presente? Ela gosta de coisa difícil de arrumar...".
Adão sabia que Deus tinha proibido os dois de comerem do fruto daquela árvore no meio do Éden, mas o Big Boss tinha que dar uma relaxada, era um ano de namoro dos dois... Se ajoelhou, agradeceu a Deus por tê-lo feito chefe do Éden e agradeceu por aquilo significar que ele podia fazer as regras por ali.
Adão se escondeu nos galhos da Árvore do meio do Éden. Gritou, gritou e gritou por Eva. Ouvindo passos, indicando que ela se aproximava, se escondeu entre os espessos galhos da árvore. Colocou o couro de cobra na mão e fez o que tardiamente seria conhecido como ventriloquismo.
- Pssss...
- AAAAAHHH! Uma cobra! Adão, socorro!!
-Caaaalmmaa, Eva. Adão que me mandou aqui. Ele disse que tem uma surpresa pra você!
- Finalmente! Achei que ele tinha esquecido nosso aniversário!
- Claaaaro que nãoo! Olha, deixa eu ver aqui o que ele deixou pra você ...
A "cobra" entrou nos galhos da árvore, pegou uma sacola feita com folhas latifoliadas de uma árvore que não mais existe no nosso tempo, mas que faziam excelentes embrulhos. A "cobra" entregou o embrulho a Eva.
- Que lindo! Ele até embrulhou! - Abriu com uma pressa notável! Deu um berro que ecoou até o livro de Apocalipse ao ver o que havia lá dentro! - Mas o que é isso? O fruto proibido? Não podemos!
- Ai, Eva, Adão já falou com o Teuzudo. Tá tudo certo, pode comer! Ele fez tudo isso por você!
- Por mim? Ai, que fofo! Ele me ama mesmo, ter feito Deus rever essa única regra só por mim!
Mordeu a droga do fruto. O que acontece daqui em diante você sabe. Ao menos você sabe o que Adão quis contar depois. É claro, Eva que mordeu o fruto, Adão foi o inocente que nem tava na hora e tal, mas ... Qual é, você engoliu essa de cobra falante? O que eu afirmo é que só porque Adão esqueceu a porra do aniversário de namoro, a gente tá nessa pindaíba, Eva levou nome de cachorra, a mulher é tratada como amiga da cobra, e Adão? É só o namorado prestativo, chefe da casa, que acolheu a Eva arrependida de ter sido enganada por uma cobra. Deus ficou intrigado depois ao encontrar um couro de cobra largado perto da árvore, mas quem se importa? Ele já tava de olho em Maria mesmo...

Sangue Podre

"Atenção, capitão, prendemos um bandido aqui nas imediações do Morro do -----. É um preto aí. O cara matou uma mulher, tá com a arma na mão e chorando. Já já a gente tá descendo com ele pra delegacia."

Um carro apenas, três policiais, todos com uma pistola em uma mão e o cassetete na outra. Dispensando formalidade, prenderam um jovem de pouco mais de 20 anos. Jogaram na mala da viatura, algemado, descalço e cheio de hematomas. Só um ficou pra trás para orientar o IML. O assassino nem reagiu à prisão, coisa rara de se ver. Normalmente não havia interrogatório no sentido que estamos acostumados a crer. Apenas um série de perguntas num banco policial, sem qualquer formalidade, entre xingamentos e golpes manuais - claro, isso depois de a imprensa já ter feito a coleta de informações, afinal, se o bandido aparece todo cheio de hematoma na rede ... Na verdade, há quem sustente que não haveria nada, afinal de contas, bandido bom é bandido morto. Bandido não é gente, é animal que parece com gente.
O que eu poderia transcrever daqueles diálogos que surgiram do "interrogatório" era o seguinte:
- E aí, cidadão...o Senhor matou a moça lá, por que? 
- A Joana era minha irmã, doutor.
- É, mas parece que ela era estranha, né? Era homem coisado ... afrescalhado...
- Era não, senhor. Joana era mulher. 
- Deixe de história, sem-vergonha. A gente já viu os documentos dela, e o povo do IML já já vai ver os outros "documentos" pra comprovar de vez.
- A Joana tinha seus problemas, mas era mulher.
- E foi por isso que você matou, né, cabra? Era seu irmão, o povo ficava dizendo que você era irmão do viadinho da rua.
- Foi mais ou menos isso, sim, senhor.
- Tá bom. Recolhe, Pijuca.
- Sim, senhor. - Disse um soldado que era responsável pelos tapas (não os transcrevi por razões de segurança).
Na cela, o soldado é que foi mais além do interrogatório.
- E como foi essa história, homem? Aí, vale a pena agora?Além de irmão de viado, assassino e presidiário. Valeu a pena?
- Valeu não, senhor. Minha irmã era estranha, sabe? Nasceu homem com uns jeito estranho. Vivia com umas conversa de mulher. Apanhou tanto em casa pra virar homem. Num teve jeito.
- E você resolveu matar ele agora só? Por quê?
- Ela foi atrás de minha mulher, fazer umas confusão lá. Deixou minha filha com vergonha, xingou minha mulher. Fui tirar satisfação, que eu não falava com ela mais de ano. Num vi motivo de ela vir me procurar. No meio da conversa, eu já cansado da vergonha que ela trazia pra família, perdi a cabeça.
- E agora a vergonha é você. Gostou? Não mexa com essa raça de viado não que a lei protege essas desgraça. Mas sua família deve ter feito o possível pra endireitar ela, foi não?
- Fizemo não. A gente fez foi terminar de entortar a coitada. Doutor, eu jurava que ela era esquisita, sabe? Que ela era toda errada, sabe? Mas ninguém me avisou...
- Avisou o que?
- Quando eu matei ela, eu notei, seu guarda. Ela sangrava, que nem eu. Ela sentiu dor que nem eu. Ela gritou que nem eu já vi um monte de gente direita gritar. E a filha da puta, cheia de sangue e morrendo teve a cara de pau de me olhar e dizer "Obrigada por me libertar dessa vida". Aquela puta pensava o que? ... Homem de Deus, ela era pra ser homem! Ser mulher tem futuro não! - Chorava.
- Vá chorar, que você vai sair daqui é que nem sua irmã, sendo mulher de uma ruma de homem.

A esposa da Dário, sabendo do que o marido tinha feito, caiu em desespero. O que seria dela? O povo já olhava pra ela estranho: Mulher de assassino, se tivesse cuidado do marido direito a família tava inteira. Mulher sem vergonha é que faz homem sem vergonha. E ninguém vê que a culpa é daquele viado? Ser mulher tem futuro não, e agora as duas sabiam. Joana, entretanto, não se interessava mais por isso. Tava morta, largada que nem um bicho numa pedra do necrotério, com uns peitos meio desenvolvidos pelos hormônios, o falo largado, denunciando o execrável descompasso do seu corpo. Meio mulher, meio homem. Condenada eternamente a essa dualidade. A família nunca foi buscar o corpo dela. 
Enquanto isso, na frente da casa dela, o povo gritava que só queria saber de Justiça; e Dário, o bandido merecia mais era apanhar na cadeia, ou morrer. Ou morrer na cadeia depois de apanhar muito. E aí daquele que falasse de Direitos Humanos, que já disse que bandido não é humano, é bicho. 
Na pedra já escorria amargamente o sangue podre de Joana. E da boca da sociedade, o sangue podre de um milhão de mulheres, negros, pobres, e outras raças esquisitas escorriam pelos apelos sádicos do povo. 
Matem, pois. É justiça. Não são gente não, são bicho. 
Será que ainda existe gente?

domingo, 21 de julho de 2013

Eu estava te esperando naquela curva estreita.

Era um sombra, eu sei. Era inexoravelmente assustador. Era desconhecido.
Eu entendo, era um curva. Não se sabe o que esperar após a dobra, por vezes ambígua, de uma curva.
Podia ser medo, podia ser desinteresse, mas você nunca cruzou aquela curva. O medo que você deve ter sentido ao arriscar uma quebra tão aguda, no mínimo foi paralisante. "Quem me espera ali?", deve ter se perguntado. Eu queria que você tivesse a força ou curiosidade de ao menos olhar. Eu achava, pela nossa comunicação não dita, pelos diálogos de olhares e pelo perfume que você punha quando vinha me ver, que havíamos combinado: Eu te esperaria naquela esquina, e você viria ao meu encontro. De lá, de repente, seguiríamos para um café ou um cinema.
Eu te esperei no frio tenso coberto por uma névoa asfixiante; nem houve resposta. Eu só podia ouvir seus passos vindo, parando e depois a rapidez com que correstes na direção oposta.
Talvez eu tenha achado demais, talvez nunca nos comunicamos de fato, apenas eu falei sozinho com teus olhares. Se então foi assim, sinto muito. O fato é que me senti fortemente injuriado ao ouvir-te voltar.
Só, com um buquê de flores que logo murcharão; entende, era eu naquela esquina! Se eu corri o risco de ser um ladrão foi por sempre imaginar roubando um maldito beijo teu. Eu era o cavalheiro com o chapéu e algo suspeito na mão.
Tudo bem, eu sei que não deveria ter te esperando, mas eu estava te esperando naquela curva estreita, próximo ao poste, com um puta sorriso e um patético buquê de hortênsias e rosas brancas.
Tal qual a névoa, eu fiquei lá, na noite, esperando ouvir seus passos voltarem, mas só ouvi a chuva caindo forte na minha roupa e um cachorro abandonado que me lambeu os sapatos como quem diz "Te entendo, parceiro.".
Era só uma esquina. Era só um buquê de flores. Era só um sorriso. Era só eu. Era só você. Era.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Steve

Steve tinha 37 anos. Era casado, tinha um casal de filhos. Trabalhava em atividades burocráticas numa repartição pública. Ganhava bem. Seria uma história ordinária; não fosse o fato de Steve ser um zumbi. Cabelos loiros, mas desgastados, ressecados e com um tom apático, que sugeriria o grisalho. A pele já foi branca, mas agora era esverdeada.
Antes de prosseguir, devo advertir, não deixe seus preconceitos tomarem conta de você. Steve é "vegetariano", só come carne de gente que já morreu e se orgulha de nunca ter atacado um ser vivo sequer. Era um protetor dos bons costumes. Doava esmola aos pobres, chegava pontualmente ao trabalho, mantinha as contas em dia, levava os filhos à escola (Ambos são vivos, entretanto, gerados antes da zumbificação de Steve). Também cuidava bastante de seu casamento com Marta, sua esposa-zumbi (As vizinhas a chamavam de "Morta" pelas costas). Ela cuidava da casa, dos filhos no seu tempo fora da escola. Era a esposa perfeita.
Que vida magnífica tinha o zumbi Steve! Os vizinhos invejavam a forma como ele manejava manter sua vida perfeita. Digo vida pois Steve não gostava que o chamassem de Zumbi, ou que insinuassem que já morrera. Era um ultraje! Ele mantinha tudo na linha, e até gostava de ir ao culto confabular com outros amigos zumbis.  Toda a rotina era planejada em seus mínimos detalhes e não havia tempo ruim com essa família; exceto pelos filhos. É difícil encarar alguém com tanta vida quando se está semi-morto. Steve não compreendia essa necessidade dos filhos de passarem dos limites ("Onde foi que eu errei???", gritava exasperado uma pergunta retórica).
Mas isso nunca abalaria Steve, tinha uma reputação a zelar. A sociedade adorava Steve, mesmo com o terno usado em seu enterro, antes de ele retornar em sua semi-vida, parecer tão gasto, e francamente macabro.
Ah, comunicação com Steve era algo difícil. Depois da morte, ele só conseguia falar coisas aparentemente sem sentido, grunhidos, dilemas inexistentes, então ele recorria sempre a frases prontas. E por favor, tivesse a educação de não contestar essas frases, era tudo que ele sabia, senão ele poderia perder a cabeça e gritar palavras notadamente agressivas, apesar do vocábulo zumbificado.
Entretanto, convenhamos...quem precisa de comunicação inteligente e aberta se podemos viver com ideias e conceitos pré-prontos, só "esquentar e servir"?
E é por isso que não há mais discussão: Que vida magnífica tinha o zumbi Steve!

terça-feira, 2 de julho de 2013

A Parede

Estática, perigosamente pênsil. Sorriso amarelado, cheia de rachaduras que lembravam rugas. Cascas de tinta velha caindo. A parede era uma senhora de cento e poucos anos. Tinha se mantido bem conservada até meio século de vida, mas depois tornou-se negligenciada por todos. Parada, quase invisível, ela via tantas histórias.
Não, eu não quero contar-lhes sobre estas coisas. Quero falar-lhe da Parede. Tão imóvel e tão inquieta, ela tinha uma leve inclinação. Alguns diziam "Está pênsil". Eu sabia, porém, que ela tentava se mover pra contar um segredo a quem pudesse ouvir. Gentil, ela me oferecia um ramo de flores perfumadíssimas quando me via voltar da escola. Seus tijolos, já à mostra pela idade, pediam compreensão pela beleza partida, mas agradeciam por serem observadas. Como é, imaginem vocês, ser uma parede por mais de um século? Algo absolutamente inobservável; ou, caso seja percebido, não é com grande estudo que se debruça sobre uma parede. É por isso, me dizia ela, que ela adora crianças. Crianças brincam com paredes, gostam de maquiá-la, de por giz e desenhar cenas incríveis em seus traços. E aí a parede é notada.
Outra vez, disse-me a Dona Parede, apaixonara-se por um grafiteiro. Todo mês ele aparecia na rua pra pintar um muro. A parede, entretanto, permanecia intocada. Ela o observava, mas ele apenas a olhava de relance, às vezes a observava de perto, com interesse, mas sempre ia embora. Até que parou em frente a ela e confessou: "Se eu te pintasse, estragaria a pureza que te envolve. Você é intocada, e tão bela assim.".
Aquilo era um amor de parede, sem beijos, apenas uma observação, uma palavra, a constatação de que ela existia. Ela se achava satisfeita. Só que o grafiteiro errou. Aquela pureza não era por ser intocada. O que ocorreu foi o seguinte:
Outro dia, ela ouviu uma confusão policial e grupo de jovens correndo de bombas de uma fumaça esquisita e ficou chocada. Nunca vira aquilo. Então, ao fim da noite, um jovem com uma lata de spray deu voz à parede: "Fale agora e nós o calaremos para sempre. Ass: Ditadura". Vieram policiais, olharam A Parede. Ela parada, com o crime em seu corpo, sem poder fazer nada. Pensaram em derrubá-la; fizeram pior. Apagaram-lhe. Ela não tinha só a frase em seu corpo. Tinha os desenhos de uma neta, tinha palavras de amor de um casal apaixonado, tinha nomes, tinha história, tinha vida. E jogaram-lhe um indecente e roto amarelo por cima. Deixaram-na nua, lisa, sem nome, sem passado. Apagada. E nunca mais ela foi a mesma. Lembrava-se pouco agora do que lhe ocorrera antes daquele dia. Vez ou outra ela tentava me contar algo, mas era muito confuso. Era bom ouvir suas histórias, mesmo que sem sentido.
Nunca mais a encontrei, mas torço por aquela velha amiga. Nossos caminhos não mais se cruzam, não mais a visito, sem tempo. Sei que, se alguém parar pra olhar aquela velha senhora, tão antiga quanto os mais antigos prédios dessa cidade, ela tentará te dizer algo. E, rezo, daqui a mais cem anos, um jovem saberá então que nós estivemos aqui. Graças à ela, A Parede.

sexta-feira, 29 de março de 2013

Reboot


A pouca receptividade da história causou adiamento de "Casa dos 12 horrores", o que me fez pensar em um Reboot no projeto. Os textos foram retirados do blog e só retornarão quando eu  tiver 5 capítulos prontos e com uma aceitação boa entre meus revisores. NÃO ABANDONEI O PROJETO! Portanto, aos leitores reminiscentes, a história terá sim continuidade, mas será republicada e recriada do zero! Um abraço a todos e uma boa noite.