terça-feira, 1 de maio de 2012

Lençóis

Lembro-me pouco dos últimos dias de vida de meu avô, apesar de que eu já era uma moça quando tudo aconteceu. Ainda mais curioso, eu fui uma das netas que cuidou dele até a hora de deixar este mundo. Coisa curiosa, como eu que deveria me lembrar tão bem, lembro apenas vagamente: do hospital, de como estava fraco, das enfermeiras tão dedicadas que vinham sempre ao seu quarto. Meu avô, com 65 anos, sofria de um grave problema cardíaco, uma condição rara, em que o músculo cardíaco se afrouxava e perdia a força necessária para bombear o sangue por todo o corpo. A primeira vez que notamos algo foi na compra dos preparativos para o natal. Era uma tradição de família de longa data reunir, toda a família para uma opulenta ceia na fazenda de meu avô, de nome Serafim. Dois dias antes da comemoração, vovô, Tio Cosme e eu fomos comprar o que faltava para a festa. Distante uns 30 km da cidade, saímos da fazenda para as compras de manhã, com intenção de voltar ao cair da tarde. Perto do pico do sol chegávamos ao Supermercado Frei Damião, o maior da cidade. Ao terminar as compras e levá-las à caminhonete de Seu Serafim, o próprio resolveu levar mais do que realmente podia, graças a uma brincadeira do meu tio de desafiá-lo. Num minuto, lá ia ele todo orgulhoso carregando compras e mais compras e no outro, ele tombava. Desmaiou de maneira tão abruta que achávamos que tinha escorregado. Logo depois, o barulho das sirenes de ambulância, o cheiro de éter do hospital e o cruel diagnóstico.
 A festa de Natal foi abandonada, mas se tornou festa de ano novo e de alta de Seu Serafim. Comemorávamos duplamente, e ele se emburrava por ter de seguir uma “dieta inútil”.
Um ano e oito meses após, o meu celular toca. “Aline, precisamos de você aqui. Seu avô passou mal novamente. Você pode acompanhá-lo?”. Vô Serafim praticamente havia me criado. Claro que eu o acompanharia. Peguei o primeiro avião que pude e assim que aterrissei na cidade vizinha à dos meus avós, Tia Vera me esperava com seu carro. Rapidamente nos dirigíamos ao hospital. Muita gente, muita conversa, risadas e meu avô, que apesar do ataque da noite passada estava bem. Aparência de bem. Cuidei dele com a dedicação que pude, às custas de noites de sono e de um período da faculdade. Mas Seu Serafim piorou numa noite chuvosa. UTI. Aquele odor de produtos de limpeza e de hospital com café expresso de uma máquina próxima. Logo depois eu entrei. Mas aí já nada me recordo. Nem do rosto do meu avô nem de nada. Lembro-me da notícia que ouvi dias depois. “Seu avô veio a óbito ne...”. Não entendia mais nada. Não queria entender mais nada. Quando se une “óbito” com alguém que sempre esteve em sua vida numa única frase, as palavras logo começam a perder sentido. E depois todo o resto, tudo se esvai num borrão aquoso. E choveu. Choveu muito, tanto lá fora, quanto dentro de mim. Choveu tanto que começou a escorrer pelos meus olhos.
Assim que consegui me recuperar, me dei conta que outras pessoas já haviam providenciado tudo o que cabia quando alguém morria. Tanto papel pra assinar e nenhum que garanta que aquele que se ama vai voltar, nos abraçar e dizer que tudo não passou de um pesadelo. Nunca conheci meu pai. Minha mãe fugiu de casa e me deixou com meus avós. Então meu pai sempre foi Seu Serafim, minha mãe sempre foi Dona Augusta, que mesmo agora estava ao meu lado. E meu pai, e avô, não estava mais comigo, já estava encantando outras pessoas em lugares que o8 s vivos não ousavam invadir. O velório teve café, teve choro, e todo o mundo estava de uma estranha cor cinza. Uma cor cinza, um ritmo cinzento, um clima chuvoso. Tudo era lúgubre. 
Hoje em dia, já formada, lembro-me apenas do momento da notícia. “Seu avô veio a óbito ne...”. Nesta manhã, provavelmente. Eu segurava os lençóis que ele pedira que buscassem de sua fazenda, para que ele se sentisse em casa. Lembro daqueles lençóis que pareciam uma bexiga que perde todo o ar, murchos. Enrolados em minhas mãos, pareciam adagas a cutucar-me o coração avisando que ele não voltaria. Os lençóis também morreram.  Lembro-me apenas dos lençóis, e de meu avó, de branco, me olhando atrás da porta da UTI, sorrindo como quem diz “Eu te amo, minha filha. Estou bem, está tudo bem.”

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