domingo, 21 de julho de 2013

Eu estava te esperando naquela curva estreita.

Era um sombra, eu sei. Era inexoravelmente assustador. Era desconhecido.
Eu entendo, era um curva. Não se sabe o que esperar após a dobra, por vezes ambígua, de uma curva.
Podia ser medo, podia ser desinteresse, mas você nunca cruzou aquela curva. O medo que você deve ter sentido ao arriscar uma quebra tão aguda, no mínimo foi paralisante. "Quem me espera ali?", deve ter se perguntado. Eu queria que você tivesse a força ou curiosidade de ao menos olhar. Eu achava, pela nossa comunicação não dita, pelos diálogos de olhares e pelo perfume que você punha quando vinha me ver, que havíamos combinado: Eu te esperaria naquela esquina, e você viria ao meu encontro. De lá, de repente, seguiríamos para um café ou um cinema.
Eu te esperei no frio tenso coberto por uma névoa asfixiante; nem houve resposta. Eu só podia ouvir seus passos vindo, parando e depois a rapidez com que correstes na direção oposta.
Talvez eu tenha achado demais, talvez nunca nos comunicamos de fato, apenas eu falei sozinho com teus olhares. Se então foi assim, sinto muito. O fato é que me senti fortemente injuriado ao ouvir-te voltar.
Só, com um buquê de flores que logo murcharão; entende, era eu naquela esquina! Se eu corri o risco de ser um ladrão foi por sempre imaginar roubando um maldito beijo teu. Eu era o cavalheiro com o chapéu e algo suspeito na mão.
Tudo bem, eu sei que não deveria ter te esperando, mas eu estava te esperando naquela curva estreita, próximo ao poste, com um puta sorriso e um patético buquê de hortênsias e rosas brancas.
Tal qual a névoa, eu fiquei lá, na noite, esperando ouvir seus passos voltarem, mas só ouvi a chuva caindo forte na minha roupa e um cachorro abandonado que me lambeu os sapatos como quem diz "Te entendo, parceiro.".
Era só uma esquina. Era só um buquê de flores. Era só um sorriso. Era só eu. Era só você. Era.

sexta-feira, 5 de julho de 2013

Steve

Steve tinha 37 anos. Era casado, tinha um casal de filhos. Trabalhava em atividades burocráticas numa repartição pública. Ganhava bem. Seria uma história ordinária; não fosse o fato de Steve ser um zumbi. Cabelos loiros, mas desgastados, ressecados e com um tom apático, que sugeriria o grisalho. A pele já foi branca, mas agora era esverdeada.
Antes de prosseguir, devo advertir, não deixe seus preconceitos tomarem conta de você. Steve é "vegetariano", só come carne de gente que já morreu e se orgulha de nunca ter atacado um ser vivo sequer. Era um protetor dos bons costumes. Doava esmola aos pobres, chegava pontualmente ao trabalho, mantinha as contas em dia, levava os filhos à escola (Ambos são vivos, entretanto, gerados antes da zumbificação de Steve). Também cuidava bastante de seu casamento com Marta, sua esposa-zumbi (As vizinhas a chamavam de "Morta" pelas costas). Ela cuidava da casa, dos filhos no seu tempo fora da escola. Era a esposa perfeita.
Que vida magnífica tinha o zumbi Steve! Os vizinhos invejavam a forma como ele manejava manter sua vida perfeita. Digo vida pois Steve não gostava que o chamassem de Zumbi, ou que insinuassem que já morrera. Era um ultraje! Ele mantinha tudo na linha, e até gostava de ir ao culto confabular com outros amigos zumbis.  Toda a rotina era planejada em seus mínimos detalhes e não havia tempo ruim com essa família; exceto pelos filhos. É difícil encarar alguém com tanta vida quando se está semi-morto. Steve não compreendia essa necessidade dos filhos de passarem dos limites ("Onde foi que eu errei???", gritava exasperado uma pergunta retórica).
Mas isso nunca abalaria Steve, tinha uma reputação a zelar. A sociedade adorava Steve, mesmo com o terno usado em seu enterro, antes de ele retornar em sua semi-vida, parecer tão gasto, e francamente macabro.
Ah, comunicação com Steve era algo difícil. Depois da morte, ele só conseguia falar coisas aparentemente sem sentido, grunhidos, dilemas inexistentes, então ele recorria sempre a frases prontas. E por favor, tivesse a educação de não contestar essas frases, era tudo que ele sabia, senão ele poderia perder a cabeça e gritar palavras notadamente agressivas, apesar do vocábulo zumbificado.
Entretanto, convenhamos...quem precisa de comunicação inteligente e aberta se podemos viver com ideias e conceitos pré-prontos, só "esquentar e servir"?
E é por isso que não há mais discussão: Que vida magnífica tinha o zumbi Steve!

terça-feira, 2 de julho de 2013

A Parede

Estática, perigosamente pênsil. Sorriso amarelado, cheia de rachaduras que lembravam rugas. Cascas de tinta velha caindo. A parede era uma senhora de cento e poucos anos. Tinha se mantido bem conservada até meio século de vida, mas depois tornou-se negligenciada por todos. Parada, quase invisível, ela via tantas histórias.
Não, eu não quero contar-lhes sobre estas coisas. Quero falar-lhe da Parede. Tão imóvel e tão inquieta, ela tinha uma leve inclinação. Alguns diziam "Está pênsil". Eu sabia, porém, que ela tentava se mover pra contar um segredo a quem pudesse ouvir. Gentil, ela me oferecia um ramo de flores perfumadíssimas quando me via voltar da escola. Seus tijolos, já à mostra pela idade, pediam compreensão pela beleza partida, mas agradeciam por serem observadas. Como é, imaginem vocês, ser uma parede por mais de um século? Algo absolutamente inobservável; ou, caso seja percebido, não é com grande estudo que se debruça sobre uma parede. É por isso, me dizia ela, que ela adora crianças. Crianças brincam com paredes, gostam de maquiá-la, de por giz e desenhar cenas incríveis em seus traços. E aí a parede é notada.
Outra vez, disse-me a Dona Parede, apaixonara-se por um grafiteiro. Todo mês ele aparecia na rua pra pintar um muro. A parede, entretanto, permanecia intocada. Ela o observava, mas ele apenas a olhava de relance, às vezes a observava de perto, com interesse, mas sempre ia embora. Até que parou em frente a ela e confessou: "Se eu te pintasse, estragaria a pureza que te envolve. Você é intocada, e tão bela assim.".
Aquilo era um amor de parede, sem beijos, apenas uma observação, uma palavra, a constatação de que ela existia. Ela se achava satisfeita. Só que o grafiteiro errou. Aquela pureza não era por ser intocada. O que ocorreu foi o seguinte:
Outro dia, ela ouviu uma confusão policial e grupo de jovens correndo de bombas de uma fumaça esquisita e ficou chocada. Nunca vira aquilo. Então, ao fim da noite, um jovem com uma lata de spray deu voz à parede: "Fale agora e nós o calaremos para sempre. Ass: Ditadura". Vieram policiais, olharam A Parede. Ela parada, com o crime em seu corpo, sem poder fazer nada. Pensaram em derrubá-la; fizeram pior. Apagaram-lhe. Ela não tinha só a frase em seu corpo. Tinha os desenhos de uma neta, tinha palavras de amor de um casal apaixonado, tinha nomes, tinha história, tinha vida. E jogaram-lhe um indecente e roto amarelo por cima. Deixaram-na nua, lisa, sem nome, sem passado. Apagada. E nunca mais ela foi a mesma. Lembrava-se pouco agora do que lhe ocorrera antes daquele dia. Vez ou outra ela tentava me contar algo, mas era muito confuso. Era bom ouvir suas histórias, mesmo que sem sentido.
Nunca mais a encontrei, mas torço por aquela velha amiga. Nossos caminhos não mais se cruzam, não mais a visito, sem tempo. Sei que, se alguém parar pra olhar aquela velha senhora, tão antiga quanto os mais antigos prédios dessa cidade, ela tentará te dizer algo. E, rezo, daqui a mais cem anos, um jovem saberá então que nós estivemos aqui. Graças à ela, A Parede.