terça-feira, 2 de julho de 2013

A Parede

Estática, perigosamente pênsil. Sorriso amarelado, cheia de rachaduras que lembravam rugas. Cascas de tinta velha caindo. A parede era uma senhora de cento e poucos anos. Tinha se mantido bem conservada até meio século de vida, mas depois tornou-se negligenciada por todos. Parada, quase invisível, ela via tantas histórias.
Não, eu não quero contar-lhes sobre estas coisas. Quero falar-lhe da Parede. Tão imóvel e tão inquieta, ela tinha uma leve inclinação. Alguns diziam "Está pênsil". Eu sabia, porém, que ela tentava se mover pra contar um segredo a quem pudesse ouvir. Gentil, ela me oferecia um ramo de flores perfumadíssimas quando me via voltar da escola. Seus tijolos, já à mostra pela idade, pediam compreensão pela beleza partida, mas agradeciam por serem observadas. Como é, imaginem vocês, ser uma parede por mais de um século? Algo absolutamente inobservável; ou, caso seja percebido, não é com grande estudo que se debruça sobre uma parede. É por isso, me dizia ela, que ela adora crianças. Crianças brincam com paredes, gostam de maquiá-la, de por giz e desenhar cenas incríveis em seus traços. E aí a parede é notada.
Outra vez, disse-me a Dona Parede, apaixonara-se por um grafiteiro. Todo mês ele aparecia na rua pra pintar um muro. A parede, entretanto, permanecia intocada. Ela o observava, mas ele apenas a olhava de relance, às vezes a observava de perto, com interesse, mas sempre ia embora. Até que parou em frente a ela e confessou: "Se eu te pintasse, estragaria a pureza que te envolve. Você é intocada, e tão bela assim.".
Aquilo era um amor de parede, sem beijos, apenas uma observação, uma palavra, a constatação de que ela existia. Ela se achava satisfeita. Só que o grafiteiro errou. Aquela pureza não era por ser intocada. O que ocorreu foi o seguinte:
Outro dia, ela ouviu uma confusão policial e grupo de jovens correndo de bombas de uma fumaça esquisita e ficou chocada. Nunca vira aquilo. Então, ao fim da noite, um jovem com uma lata de spray deu voz à parede: "Fale agora e nós o calaremos para sempre. Ass: Ditadura". Vieram policiais, olharam A Parede. Ela parada, com o crime em seu corpo, sem poder fazer nada. Pensaram em derrubá-la; fizeram pior. Apagaram-lhe. Ela não tinha só a frase em seu corpo. Tinha os desenhos de uma neta, tinha palavras de amor de um casal apaixonado, tinha nomes, tinha história, tinha vida. E jogaram-lhe um indecente e roto amarelo por cima. Deixaram-na nua, lisa, sem nome, sem passado. Apagada. E nunca mais ela foi a mesma. Lembrava-se pouco agora do que lhe ocorrera antes daquele dia. Vez ou outra ela tentava me contar algo, mas era muito confuso. Era bom ouvir suas histórias, mesmo que sem sentido.
Nunca mais a encontrei, mas torço por aquela velha amiga. Nossos caminhos não mais se cruzam, não mais a visito, sem tempo. Sei que, se alguém parar pra olhar aquela velha senhora, tão antiga quanto os mais antigos prédios dessa cidade, ela tentará te dizer algo. E, rezo, daqui a mais cem anos, um jovem saberá então que nós estivemos aqui. Graças à ela, A Parede.

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