sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Sangue Podre

"Atenção, capitão, prendemos um bandido aqui nas imediações do Morro do -----. É um preto aí. O cara matou uma mulher, tá com a arma na mão e chorando. Já já a gente tá descendo com ele pra delegacia."

Um carro apenas, três policiais, todos com uma pistola em uma mão e o cassetete na outra. Dispensando formalidade, prenderam um jovem de pouco mais de 20 anos. Jogaram na mala da viatura, algemado, descalço e cheio de hematomas. Só um ficou pra trás para orientar o IML. O assassino nem reagiu à prisão, coisa rara de se ver. Normalmente não havia interrogatório no sentido que estamos acostumados a crer. Apenas um série de perguntas num banco policial, sem qualquer formalidade, entre xingamentos e golpes manuais - claro, isso depois de a imprensa já ter feito a coleta de informações, afinal, se o bandido aparece todo cheio de hematoma na rede ... Na verdade, há quem sustente que não haveria nada, afinal de contas, bandido bom é bandido morto. Bandido não é gente, é animal que parece com gente.
O que eu poderia transcrever daqueles diálogos que surgiram do "interrogatório" era o seguinte:
- E aí, cidadão...o Senhor matou a moça lá, por que? 
- A Joana era minha irmã, doutor.
- É, mas parece que ela era estranha, né? Era homem coisado ... afrescalhado...
- Era não, senhor. Joana era mulher. 
- Deixe de história, sem-vergonha. A gente já viu os documentos dela, e o povo do IML já já vai ver os outros "documentos" pra comprovar de vez.
- A Joana tinha seus problemas, mas era mulher.
- E foi por isso que você matou, né, cabra? Era seu irmão, o povo ficava dizendo que você era irmão do viadinho da rua.
- Foi mais ou menos isso, sim, senhor.
- Tá bom. Recolhe, Pijuca.
- Sim, senhor. - Disse um soldado que era responsável pelos tapas (não os transcrevi por razões de segurança).
Na cela, o soldado é que foi mais além do interrogatório.
- E como foi essa história, homem? Aí, vale a pena agora?Além de irmão de viado, assassino e presidiário. Valeu a pena?
- Valeu não, senhor. Minha irmã era estranha, sabe? Nasceu homem com uns jeito estranho. Vivia com umas conversa de mulher. Apanhou tanto em casa pra virar homem. Num teve jeito.
- E você resolveu matar ele agora só? Por quê?
- Ela foi atrás de minha mulher, fazer umas confusão lá. Deixou minha filha com vergonha, xingou minha mulher. Fui tirar satisfação, que eu não falava com ela mais de ano. Num vi motivo de ela vir me procurar. No meio da conversa, eu já cansado da vergonha que ela trazia pra família, perdi a cabeça.
- E agora a vergonha é você. Gostou? Não mexa com essa raça de viado não que a lei protege essas desgraça. Mas sua família deve ter feito o possível pra endireitar ela, foi não?
- Fizemo não. A gente fez foi terminar de entortar a coitada. Doutor, eu jurava que ela era esquisita, sabe? Que ela era toda errada, sabe? Mas ninguém me avisou...
- Avisou o que?
- Quando eu matei ela, eu notei, seu guarda. Ela sangrava, que nem eu. Ela sentiu dor que nem eu. Ela gritou que nem eu já vi um monte de gente direita gritar. E a filha da puta, cheia de sangue e morrendo teve a cara de pau de me olhar e dizer "Obrigada por me libertar dessa vida". Aquela puta pensava o que? ... Homem de Deus, ela era pra ser homem! Ser mulher tem futuro não! - Chorava.
- Vá chorar, que você vai sair daqui é que nem sua irmã, sendo mulher de uma ruma de homem.

A esposa da Dário, sabendo do que o marido tinha feito, caiu em desespero. O que seria dela? O povo já olhava pra ela estranho: Mulher de assassino, se tivesse cuidado do marido direito a família tava inteira. Mulher sem vergonha é que faz homem sem vergonha. E ninguém vê que a culpa é daquele viado? Ser mulher tem futuro não, e agora as duas sabiam. Joana, entretanto, não se interessava mais por isso. Tava morta, largada que nem um bicho numa pedra do necrotério, com uns peitos meio desenvolvidos pelos hormônios, o falo largado, denunciando o execrável descompasso do seu corpo. Meio mulher, meio homem. Condenada eternamente a essa dualidade. A família nunca foi buscar o corpo dela. 
Enquanto isso, na frente da casa dela, o povo gritava que só queria saber de Justiça; e Dário, o bandido merecia mais era apanhar na cadeia, ou morrer. Ou morrer na cadeia depois de apanhar muito. E aí daquele que falasse de Direitos Humanos, que já disse que bandido não é humano, é bicho. 
Na pedra já escorria amargamente o sangue podre de Joana. E da boca da sociedade, o sangue podre de um milhão de mulheres, negros, pobres, e outras raças esquisitas escorriam pelos apelos sádicos do povo. 
Matem, pois. É justiça. Não são gente não, são bicho. 
Será que ainda existe gente?

Um comentário: